31.5.08

Algumas fotos

Bonito fim de tarde e noite ontem em Paris. Jovens fazendo o seu piquenique alcoólico no pont des arts e arredores do Sena. Louvre cheio, sobretudo nas proximidades de seu ícone pop. Quartier Latin lotado de turistas e locais, disputando exagerados kebabs. Fila na porta do Caveau de la Huchette. Acima algumas fotos dispersas, todas ampliáveis.

29.5.08

Sinfonia Kaddish de Bernstein

Em 1963, sob encomenda da Orquestra de Boston, Leonard Bernstein (foto acima) escreveu uma longa sinfonia, para orquestra, mezzo-soprano e narrador. Dedicada à memória de John F. Kennedy, atravessada por um texto com o qual se sentia profundamente insatisfeito. Nesse momento, pediu ao jovem Samul Pisar, sobrevivente da ocupação alemã na Polônia, que escrevesse um outro. Assim, em 2003, sob a regência de John Axelrod e para a Orquestra de Chicago, Pisar apresentou uma nova versão, muito elogiada. É sofrida a história toda. E o texto retoma o sentido geral das imprecações de Jó. Mas felizmente a música, maravilhosa, permanece a mesma: moderna, incisiva. Na interpretação de ontem na Salle Pleyel, com a ótima cantora Ana María Martínez, o mesmo regente e o próprio Samuel Pisar como narrador, foi o que minimizou a aparência de uma grandiloqüente celebração litúrgica.

Esperando Godot

Não é sempre que se vê um Esperando Godot tão engraçado, com notável ritmo cômico: agitação das personagens principais, dança divertida de Lucky, um Pozzo exagerado, tirânico e melancólico. A montagem do Théâtre du Nord-Ouest serviu-se mesmo de uma de suas salas improvisadas, com uma escada no fundo da cena (que é, de fato, a passagem de entrada do público), para transmitir a possibilidade de uma saída ao drama dos dois vagabundos, Estragon e Vladimir (o primeiro deles ótimo ator). Nessa agitação toda, no entanto, parece terem-se perdido algumas das dimensões principais do texto de Beckett, às quais esteve atenta a montagem campineira do ano passado: a solidão, a impossibilidade de transcendência, a opressão da espera sem sentido.

28.5.08

Sevilha, outras histórias

As decisões de viagens são quase sempre contigentes. Vimos que havia passagens promocionais Paris-Granada com apenas 4 dias de intervalo ou senão 8. Não dava, evidentemente, para passar uma semana inteira por lá. Com as contas feitas, reservamos um fim de noite e um dia inteiro em Sevilha, um equívoco. A cidade tem mais coisas prá ver. Acabara de começar a tradicional temporada de touradas. Um pouco intransitável pelos meios de transporte tradicionais (talvez por isso a série "Sevilha andando" de João Cabral de Mello Neto), alugamos duas bicicletas para trocar as passagens de ônibus e prolongar por 4 horas a estadia. Mesmo sistema de Paris, um pouco mais baratas. Daí a foto acima, pausa num semáforo.

Livia volta hoje a Paris.

27.5.08

Duas exposições no Centre Pompidou

O Centre Pompidou apresenta nesses últimos dias duas grandes exposições: Rastros do Sagrado e Louise Bourgeois. Tão incompatíveis e talvez, por isso, interessantes assim, lado a lado. O universo telúrico, sexualizado da famosa escultora, o recorte metafísico, transcendente da exposição temática, cujo cartaz reproduz os experimentos fotográficos sobre correntes elétricas. Traces du Sacré, no entanto, parece recair nas abordagens muito vastas, muito transversais, da questão religiosa. Como a eletricidade da chamada publicitária, parece percorrer, sem grandes questões, ideológicas, históricas ou mesmo religiosas, as possíveis formas de expressão do sagrado. O termo vago vai recobrindo tudo, e apagando os seus problemas locais. Nesse sentido, a exclusão de um quadro como o de Kasimir Malévitch, do acervo do próprio museu (acima), com seu contexto cristão e político, não surpreende: O homem que corre (1933-1934).

26.5.08

Jean Fautrier

Não há lugar para todos os pintores nos museus. Mas bem que alguns podiam ter um pouco mais de quadros circulando pelas coleções públicas. Jean Fautrier, parisiense nascido em 1891, admirado por Jean Paulhan, André Malraux, Francis Ponge, é um desses. Quatro telas apenas na coleção do Centre Pompidou, dentre elas esse belo Nu negro, Nu noir de 1926. Mas vejo que há alguns em Antibes, na Galerie Michel Fillion. Alguns outros no Musée d'Art moderne de Paris. Sigo na busca.

História do Japão contada por uma atendente de bar

História do Japão contada por uma atendente de bar (1970) é um filme de Shohei Imamura, cineasta japonês que ganhou a Palma de Ouro de Cannes em 1983 e 1997. Nele uma senhora relata as suas desventuras amorosas perpassadas pela história do pós-guerra. Histórias que se distanciam: relatos felizes atravessados por cenas de arquivo de conflitos civis. Ou que se mesclam: a penetração militar americana no Japão traduzindo-se no desejo cínico de fugir aos braços dos endinheirados marinheiros. Com uma montagem entrecortada, Imamura parece mostrar entretanto o quanto a sua personagem lhe escapa. Cena emblemática, num momento, diante de fotos de crianças e mulheres mortas, ela lhes acusa o caráter ficcional. Noutro, vai relatando pequenos detalhes de sua vida sexual e financeira, inseparáveis. Contra a expectativa dos documentários em geral, não contém as palavras, o relato de pequenas espertezas imorais, a franqueza sem embaraço.

25.5.08

Pão pão, queijo queijo

Conversando em Avignon, descobri que não havia queijaria no centro da cidade. No Brasil, há pouquíssimas lojas especializadas em queijo, mesmo com produtores como o Serra das antas e seu ótimo Point l'évêque. Aqui, no entanto, é estranho. O vendedor especialista em queijo não só escolhe produtos melhores de produtores menores (num supermercado mesmo com distribuição local, só as grandes fábricas com processos mecânicos conseguem vender, como a Président). O maître fromager sabe também como conservar queijos e fazê-los envelhecer, apurando o sabor. Com a diminuição do poder de compra dos franceses, e diante da inesgotável variedade de queijos nacionais, as queijarias vêm se tornando um bom lugar para um prolongado bate-papo com os vendedores.

O pão ficou caro na França depois de 2005, com a alta do preço do trigo e dos aluguéis. Em várias padarias de Paris, há mesmo um tipo de baguette predominante: a de massa pronta, distribuída em grandes caminhões pela madrugada. É o mesmo pão que vai sendo encaminhado ao forno aqui e ali. Alguns padeiros, no entanto, insistem em produzi-lo artesanalmente, com qualidade imbatível. Mas não se sabe até quando. Há meses o eletrodoméstico mais procurado na França é uma máquina de pão: a partir de 30 euros, economia garantida.

Alban Berg Quartett

Na semana passada o quarteto de cordas Alban Berg (foto acima) tocou no Théâtre des Champs Elysées em Paris. Vieram para uma turnê de despedida, depois de mais de quarenta anos de formação. Teatro quase lotado, de bela acústica. Para ele executaram peças de Haydn, Beethoven e Berg. Perfeitos, expressivos na interpretação de um Beethoven absolutamente moderno, de seus últimos quartetos. Sem recaírem em exageros do que se costuma chamar de "romantismo". Com brancos entre partes, nunca enfáticos: como se a música continuasse o seu simples trajeto. Líricos em Berg. A coluna de Jorge Coli do caderno Mais dedicou uma nota ao concerto (para assinantes).

24.5.08

Au Polidor

Já fazia tempos que ouvia recomendações do restaurante Au Polidor. Nem muito pela comida, tampouco pelo atendimento. Como em outros lugares de Paris, há ali um pouco da história da passagem de escritores pela cidade. É onde iam jantar André Gide, James Joyce, Paul Verlaine, Hemingway. Mesas coladas que se compartilham com os vizinhos de lado. Cardápio exposto na parede, preços competitivos. Não, não é chique. Há um ar de cantina, atendimento de cantina: a senhora me indicou uma geladeira onde eu poderia ver os vinhos disponíveis! E, evidentemente, comida de cantina. Se estivesse fora do circuito turístico (rue Monsieur Le Prince, Quartier Latin), e sem a lembrança de seus ilustres escritores, estaria vazio, talvez fechado.

21.5.08

Imprestável

Até aqui confesso que vim tendo sorte com relação às burocracias francesas. Tirando o episódio do gerente português que enviou a minha senha ao Brasil (embora nunca tenha chegado lá), as coisas estavam tranqüilas. Fui fazendo carteirinhas aqui e ali, prá Cinemathèque ou para ir à piscina, etc. Às vezes uma ou outra entrevista prévia era necessária para consultar as bibliotecas, mas tudo normal. Com esse espírito, conto que fui mesmo um pouco irresponsável em faltar à minha visita médica na polícia sem avisar, quando fui a Avignon. Semana passada, no entanto, depois de ter programado os últimos dois meses para tirar xerox de algumas coisas, descubro que a única biblioteca que me empresta livros vai suspender o empréstimo até setembro, agora no fim do mês! Retirei alguns livros, que a senhora carimbou distraída para 2 de junho. Adverti-a do engano, 31 de maio era a data final. Pois bem, volto ontem para a penúltima rodada de empréstimos (na Sorbonne, onde só posso consultar e retirar 4 livros por dia!), e vejo que eles resolveram antecipar a história. Sabendo que nem a BNF, nem a Sainte-Geneviève, nem a MSH emprestam, estou agora sujeito aos serviços de xerox caros, sem frente-verso, com filas intermináveis, das próprias bibliotecas universitárias.

Na busca pela imagem, um link ótimo.

Cultura antropológica em Madrid

Com o tempo, o aparentemente fútil pode se converter em fonte de conhecimento de uma cultura e mais especialmente de uma classe. Isso a propósito de dois museus de Madrid, o do Traje e o de Artes Decorativas. Deste último, vi pouco, como, aliás, em outra ocasião, quando arrisquei uma visita em dia gratuito ao Arqueológico (sem funcionários, alguns museus abrem suas portas, mas nem tanto...). Quanto ao Museu do Traje (dentro do campus de Moncloa da Universidad Complutese), um dos divertimentos é ver as criações de Paco Rabanne, Jean Paul Gautier e Giorgio Armani dentro do museu. Mas há outros. Saber, por exemplo, que a invenção dos vidros que parecem brilhantes (de George Fréderic Strass, 1701-1773) fez sucesso no que hoje é o Paseo del Prado, quando todos saíam para ver e ser vistos. O museu também recorda a relação das vanguardas com a arte déco, tão freqüentemente esquecida (como, por exemplo, na exaustiva exposição Picasso do Reina Sofía), embora muitos artistas - Dalí, De Chirico, Matisse, Sonia Delaunay e Picasso mais que todos juntos - tenham desenhado estampas, roupas para representações teatrais e ilustrado capas de revistas. Como última curiosidade, acima está a Mariquita Pérez, “a boneca que se veste de verdade”, sonho de várias meninas espanholas durante os anos 30 e 40.

20.5.08

Othello no Théâtre du Nord-Ouest

O "teatro do noroeste" em Paris tem, há muitos anos, o projeto ambicioso de montar integrais: de Molière, de Paul Claudel, de Racine. Nesta temporada, já há alguns meses vem apresentando semanalmente as peças de Shakespeare. Integrais mesmo: sem cortes, prolongando o Rei Lear, por exemplo, por cinco horas de espetáculo! Fui no domingo passado ver um Othello intimista, numa sala de poucos lugares e poucos recursos: um subsolo sem cenário com colunas no meio, sem música, senão cantada pelos próprios atores. Para pontuar as seqüências, apenas uma sucessão de flashs: a luz se apaga, muda-se a cena. Com interpretações excelentes, no entanto, o texto resiste. Karine Laleu fez uma Desdêmona magnífica. Também Assane Timbo no papel de Othello. O discreto Iago de Alexandre Mousset permitiu, ademais, ver por trás de si a figura do autor, urdindo as tramas, observando-as de longe, medindo com elas as reações das personagens e as do público.

Notinha sobre Salamanca

Salamanca foi dominada pelo fascismo desde o início da guerra civil. Em uma de suas igrejas há uma placa comemorativa em homenagem aos soldados “nacionalistas”. Com a memória ainda recente da visita à cidade, li em El País de uns bons dias atrás: “O PP [Partido Popular], que governa a Prefeitura de Salamanca, rechaçou a moção do grupo socialista de retirar de Francisco Franco o título de ‘prefeito de honra perpétua’ da cidade - concedido pela corporação em 1964 - e também não aceitou revogar a primeira Medalha de Ouro de Salamanca outorgada ao ditador em 1948. Os que apóiam o prefeito, Julián Lanzarote, rechaçaram igualmente a proposta de tirar da Praça Maior (foto acima) o medalhão gravado com a efígie de Franco, colocado em 1937 no pavilhão dedicado aos reis.”

19.5.08

Em clima de despedida

Nesses tempos quase loucos (e felizes) de despedida de Madrid é difícil dedicar pequenos textos a cada uma das coisas que vimos. Mais fácil seria uma listinha. Mas nem lá, nem cá, comento os passeios dos últimos quatro dias, quando Pablo esteve por aqui. Primeiro, a concorrida exposição “Goya en tiempos de guerra”: quadros de coleções privadas, de museus estrangeiros, mas sobretudo os do próprio Prado rearranjados para dar destaque a dois, novos em folha depois da restauração: Dos e Tres de mayo de 1808 (quando Goya pinta os quadros dos ministros a favor da França, entre 1808-14, a curadoria faz o possível para dizer que nessa época ele se dedica à criação pessoal e independente). Também fomos visitar o Palácio Real de Madrid e, claro, deixamos nossas entradas usadas em pouco mais de uma hora a qualquer interessado atento. Pensamos, inclusive, num sistema de rodízio que certamente seria útil: melhor seria uma fila para ficar com a entrada dos que já visitaram (e assim dividir os custos) do que fazer a mesma fila para pagar 8€ de forma egoísta e irracional! Por último, e para terminar com os museus, fomos conhecer a coleção permanente do Thyssen-Bornhemisza, irregular graças às paisagens da senhora Carmen e seu gosto pelos pintores norte-americanos, mas com jóias de Bramantino (Cristo resucitado, 1490), Tintoretto, Tiziano (San Jerónimo en el desierto, 1575), Cranach, Dürer, Van Dyck, Edvard Munch, Van Gogh, Edward Hooper (Muchacha cosiendo a máquina, 1922, acima).

Em Segovia

Em Segovia, dois monumentos impressionam, além do famoso e gigantesco aqueduto do século I. Um dele é o Alcázar ou castelo (acima), uma imensa fortaleza, parecida com aquela que vemos nos filmes de cavalaria, inclusive com a ponte e o rio que cerca a construção. Foi a residência dos reis de Castela durante toda a Idade Média, prisão por dois séculos depois que a corte se instala em Madrid, depois propriedade do Ministério da Guerra e armazém de artilharia. De proporções bem menores, mas igualmente interessante, é o Museo Zuloaga, edificado junto à antiqüíssima igreja San Juan de los Caballeros. Sua história é das mais curiosas, pois primeiro foi templo visigodo, depois românico a partir do século X, com reformas substanciais no XII e XIII. As alterações só voltaram a ser realizadas em 1905, quando Daniel Zuloaga compra a igreja em estado de abandono completo, pois servia de garagem e depósito de madeira. Então, constrói um andar na parte superior da nave, onde passa a viver. A igreja propriamente dita fica reservada para a construção do forno, do ateliê e para abrigar, expor e vender sua produção de cerâmicas. O sobrinho de Daniel, o famoso pintor Ignacio Zuloaga, também trabalhou nesse inusitado ateliê.

18.5.08

Igreja de Vera Cruz, Segóvia

Segóvia, cidade a 100 km de Madrid, tem um conjunto importante de igrejas românicas. Com sorte, é possível entrar em algumas delas, nem sempre previstas para turistas, que privilegiam, em apenas uma jornada, o impressionante aqueduto romano, o Alcázar e a catedral gótico-renascentista. A de Vera Cruz (foto acima), antiga igreja do Santo Sepulcro, por reproduzir as formas da igreja original de Jerusalém, foi consagrada em 1208. Com 12 lados, é construída em torno de um pequeno círculo central, em dois andares, onde está um túmulo vazio. Menos igreja paroquial, portanto, mais um santuário. Supostamente erguido pelos cavaleiros templários ou pelos cavaleiros do Santo Sepulcro, hoje pertence à Ordem de Malta.

Madrid é Brasil

Estive nesses quatro últimos dias em Madrid para encontrar Livia. Era o período da festa tradicional de San Isidro, dia 15, santo padroeiro da cidade. Coincide com o festival de fantoches. Há celebrações litúrgicas e outras, mais festivas, em todos os lugares. Na última vez que tinha ido à Madrid, já tínhamos tentado acompanhar os eventos de uma "semana de dança". Com pouco tempo, em virtude da incrível oferta de museus e exposições (como as de Modigliani, Picasso e Goya), esperamos insatisfeitos 1h30 para ver as tais danças tradicionais (foto acima) perto do Teatro da Ópera. Desta vez, bem que podíamos ter imaginado que a celebração com bonecos gigantes (fotos no flickr) não ia dar em muita coisa...

13.5.08

Pequenas férias

Final de semana aqui foi um longo feriado prolongado, de quinta até segunda-feira. Paris vazia, mesmo de turistas. Bom para andar de bicicleta pelos bairros empresariais absolutamente desertos e ver algumas exposições. Também para ladrões, clandestinamente, pularem os muros vigiados por câmeras e roubarem dois quartos térreos aqui no Convento dos Récollets, de moradores que deixaram as janelas abertas e computadores portáteis à vista. Mas o blog tira férias até sábado. Nesse meio tempo, organizo as novidades. Até. (A gravura acima é de Daumier da série sobre o advogado Macaire, o texto segue abaixo):

Messieurs, voici la vérité, je suis un petit voleur, mais Mr. Macaire en est un grand…… J'ai chipotté, chipotaillé des riens, il a grinché, floué, agioté sur une grande échelle, j'ai gagné la misère et la police correctionnelle, il a gagné des millions et il m'accuse. Le tribunal n'ayant pas à juger le grand voleur, condamne le petit, et Macaire se retire la tête haute.

11.5.08

Pentesiléia na Comédie Française

Em parte do teatro romântico, não raro as grandes paixões são acompanhadas por grandes discursos. Deixa-se de lado a ação, em busca de uma dimensão introspectiva, pessoal. Os sentimentos são ditos, como se se apropriassem os gêneros mais líricos: a poesia, o diário, a confissão. Em Pentesiléia de Henrich Von Kleist, esse universo é transportado para o drama da rainha das Amazonas e de Aquiles. Atração irresistível, em que se mesclam os desejos de vida e de morte. Duelam, amam-se. A cada instante, no entanto, interrompe-se a ação para que expressem seus anseios. Com eles, e conforme a peça vai avançando, todas as angústias do amor, da loucura e da não-correspondência dos afetos. Um cuidado com a elocução é fundamental. É o discurso que deve exprimir o movimento das almas.

Jean Liermier privilegiou essa dimensão de Kleist. Cenários duros, estáticos. Pouca luz, pouca movimentação de cena. Na primeira, os companheiros de Aquiles apenas olham a batalha ao longe (invisível ao espectador), iluminados por um candeeiro, e a descrevem. Essa opção, no entanto, não resiste a interpretações frágeis, inseguras (com visíveis falhas de memória), hesitantes. Sem a confiança nas palavras é como se faltasse o elemento principal de Pentesiléia: uma certa confiança nos sentimentos e na possibilidade de dizê-los a quem está próximo.

8.5.08

Lovis Corinth no Musée d'Orsay

Lovis Corinth (1858-1925) não é um pintor muito conhecido na França. Impressionista, expressionista, alemão. Autor de uma obra diversa, nem tanto desigual: mitologias, quadros religiosos, auto-retratos, retratos em personagem, paisagens, naturezas mortas. O Musée d'Orsay em Paris dedica-lhe, nesses últimos dias, uma grande retrospectiva. É a oportunidade de ver a sua surpreendente Salomé, tocando com os dedos a cabeça de São João Batista, desviando o olhar, com os seios à mostra numa estranha composição de amarelos. Ou o espetacular conjunto de naturezas mortas, bois abertos no abatedouro, vermelhos e negros; paisagens expressivas, com as quais dialoga uma bela homenagem de Alselm Kieffer feita especialmente para a exposição. Ou a velhinha de pele estriada, feita de pinceladas rápidas e texturas. Por fim, mas é bem o início da exposição, para observar esse auto-retrato, acima, em que Corinth, qual um bufão nos olha e brinda, apertando com os dedos a ponta do seio de sua mulher.

7.5.08

Madrid e seus zarajos

Em Paris sair para almoçar, e sobretudo para jantar, é caro. Mais do que na Itália ou em Londres, ou na Espanha. Em contrapartida, diferentemente de Londres e seu lamentável "fish and chips" e outros equivalentes, é raro comer mal. Lembro-me de uma única vez até agora, indicado pelo Routard. Tá certo que tenho evitado há algum tempo os restaurantes "étnicos". Um mínimo de qualidade, no entanto, sempre está presente: saladas frescas e inventivas, possibilidade de escolher o cozimento das carnes, vinhos razoáveis. Em Madrid, e na Espanha em geral, a história é outra. Livia e eu vamos peregrinando sem sucesso. Tudo é sempre farto, exagerado, mas nada além: é como se fosse comida caseira, na rua. As coisas estão prontas; servem-nos. Por isso a surpresa de encontrar o restaurante La Viuda Blanca (c/ Campomanes 6, fotos no link) e sua ótima relação custo benefício na hora do almoço (13 euros, entrada, prato, sobremesa, café e vinho). Além de tudo, discreto e agradável. O bar de tapas Zambra (c/ de la Victoria 12), é outra indicação, embora seja um pouco bruto. Lá se servem ótimos zarajos: um novelo de tripa de carneiro frito, típico de Cuenca (foto acima, a pronúncia é essa mesma).

6.5.08

Fotos e links

A pedidos, acabei de colocar algumas fotos no flickr, como essa acima da tourada de Sevilha, num de seus momentos mais dramáticos (outro dia vi um documentário que explicava que o bom toreiro deve encerrar o combate com uma espetada certeira, de preferência com o touro vindo a seu encontro; não foi o caso). Incluí ao lado, além disso, mas segue também aqui, o link para os blogs de dois amigos internacionais: Danilo e Dong Hwuan, autores dos blogs Degelo e Para escribir he escrito (o primeiro está em português).

Novos curtas de Madrid

Templo de Debod. No Paseo del Pintor Rosales, 2, perto da Plaza de España, um templo egípcio do século II (foto acima), dedicado aos deuses Amón e Isis, doado pelo governo do Egito em 1968. A história é mais interessante que o edifício, pois são toneladas de pedras que foram desmontadas no Egito para serem trazidas à Espanha, tudo por causa da construção de uma represa na região de Debod. Esse e outros templos ficavam a maior parte do tempo submersos e só no verão era possível visitá-los. Cada vez mais deteriorados - as pinturas murais se perderam - a única solução foi doá-los.

Otto Dix, retrato de Hugo Erfurth, técnicas e segredos. Estudo por meio de raios X e fotografias infravermelha da obra Hugo Erfurth con perro (1926), comparando a técnica de Dix, característica da Nova Objetividade alemã, com as técnicas utilizadas por mestres do Renascimento.

Casa de Lope de Vega. Na calle Cervantes, 11. Reconstrução do mundo privado do escritor, numa das casas em que viveu. O oratório, em que recebia missa todos os dias, a sala dos homens e o estrado reservado para as mulheres (como, aliás, na Casa de Cervantes de Alcalá de Henares e em muitas outras do período), o quarto de visitas obrigatório (estabelecido por ordem do rei Felipe II, destinado a acolher militares e nobres de passagem), as camas altas pelo perigo dos ratos (conta-se que na casa existiam 20 gatos...). No quarto das filhas, um dos signos de que Lope foi reconhecido em vida: um espelho de prata, único adorno, incapaz de refletir imagens por ser de prata, mas prova de seus status. No que se supõe fosse a antiga cozinha, hoje está uma sala de estudos dedicada ao Século de Ouro....

Livros + Madrid. Os livros por aqui não são nada baratos e as edições, em sua maioria, não são nem bonitas nem bem cuidadas. Por isso, na “noche de los libros”, realizada no 23 de abril passado, dia em que morreram tanto Cervantes quanto Shakespeare, todas as livrarias nos brindavam com o desconto fenomenal de 10%. Paralelamente, vários eventos animaram as livrarias e algumas instituições, abertas quase todas até as 2 da madrugada. Escolhi os curtas de M. Duchamp, Moholy-Nagy, J. Cornell, L. Lye, R. Serna, G. Fromanger, R. Breer, D. Jarman e C. Close, todos expostos no Palacio de Altamira (Flor Alta, 8), atual Instituto Europeo de Design. Confesso que não foi fácil e que muitas vezes era mais interessante observar o teto, decorado com motivos geométricos e vegetais.

5.5.08

Luca Giordano no Casón del Buen Retiro

Para comemorar o fim das reformas realizadas entre 1997 e 2007, o Casón del Buen Retiro abre suas portas com uma exposição de Luca Giordano em que o principal atrativo é a restauração de um de seus afrescos, o único que restou, correspondente ao salão principal, chamado Apoteosis de la Monarquía Española (1697). O tema principal, entretanto, e apesar de sua beleza barroca feita de pinceladas rápidas, está em uma superfície com rachaduras aqui e acolá, nada desprezíveis e um pouco inexplicáveis diante dos 10 anos de arrumação da casa. Talvez por isso, ou pelo azul celeste, pouco interrogativo e com o aspecto do paraíso desgastado pelo senso comum, o mais interessante é outra pintura, disposta na mesma sala. Chama-se Rubens pintando la alegoría de la Paz (1660) e é um quadro de grandes dimensões, com forte contraste claro/escuro e bastante representativo do que inspira em Giordano o gosto pelas mulheres brancas, sensuais em sua corpulência, com movimentos a um só tempo torcidos e alongados. Não é à toa que Peter Pauls Rubens é o retratado, numa tela inquietante, em que vida e arte são espelhos. Rubens observa Vênus/Paz que por sua vez observa seu amante, Marte/Guerra. Nós, espectadores, vemos o quadro de Giordano que representa a Rubens representando o que vê. Na porção inferior, aparecem alegorias dos elementos que a guerra destrói: poder, política, comércio, ciência, artes. Mas o que realmente desconcerta são os seres fantásticos que servem de suporte material aos personagens: um urso negro que sustenta o quadro pintado e a cariátide da poltrona de Vênus, algo que se assemelha a uma Fúria e onde está sentado, muito tranquilamente, Rubens. Infelizmente nenhum desses detalhes podem ser vistos na foto acima!

Convento de las Descalzas Reales

Apesar de se tratar de um convento, diz-se que as Descalzas Reales reúne uma impressionante coleção de obras de arte, entre as quais se podem enumerar telas de Velázquez, Murillo, Ribera, Van der Weyden, Tiziano. Sua fundadora, Juana de Austria (mãe de don Sebastião de Portugal), aproveitou o edifício de um palácio para aí estabelecer a Ordem das Clarissas ou Descalças. Desde a fundação, em 1559, recebem-se dotes de freiras que esperam passar aí o resto de suas vidas. O inusual é que muitas delas pertenciam à realeza ou à nobreza, daí seus dotes serem grandes somas de dinheiro e obras de arte de valor inestimável. Mas o recinto ainda é monastério de clausura e, portanto, não é possível visitá-lo como museu. Os horários são restritos, o número de visitantes é reduzido, conhece-se apenas um quarto do edifício e as visitas são sempre guiadas e não necessariamente pretendem mostrar a coleção. Explico em detalhe. O guia responsável pelos não mais de 30 minutos de explicação era absolutamente burocrático e carrancudo ao apresentar os tapetes de Bruxelas baseados em desenhos de Rubens, os quadros de Coello ou a comovente escultura Ecce homo de Gregorio Fernández. Pois exatamente o oposto ocorria quando contava que de todas as monjas que chegaram a ser professas, nenhuma abandonou a ordem. Também saboreava cada frase devota ao falar do dormitório sem camas das freiras até 1970, das muitas que morreram de pneumonia por não se permitir calefação e o claustro ser aberto até o final do XVII, das sandálias de três tiras que usam e são feitas com materiais descartados, da dura limpeza que realizam duas vezes ao dia. O auge da ternura, entretanto, esteve reservado para as alfaces e tomates da horta do convento. Imaginem que, segundo ele, por serem plantados, cuidados e colhidos por mãos divinas eram maravilhosamente bons e, portanto, também divinos.

O pão dos anjos em Madrid

Título da mostra que comemora a inauguração da Fundação Caixa Forum (Paseo del Prado, 36, acima, foto de seu famoso jardim suspenso), baseado numa eucaristia do século XVI tramada num tapete cujos desenhos originais eram de Alessandro Allori e Francesco Salviati. O nome da exposição é ambicioso, mas pouco representativo da coleção florentina. Sobressai a Virgen de la galería (Madonna della loggia, 1467) em óleo sobre madeira de Botticeli e um outro pão, bem mais dos desgraçados, um óleo sobre cartão colado à tela de Pietro Sorri (1556?-1622). Multiplicación de los panes y los peces (1603), com aspecto de esboço mas de efeito demasiado assustador para sê-lo. Os pêlos do pincel deixam seu rastro, espalhando tons de marrons com leves esverdeados e brancos. Um Cristo está no centro do quadro, quase de costas para o observador e voltado para uma massa esquálida, de rostos especialmente grotescos e sem olhos.

Universidad de Salamanca

A parte mais conhecida da Universidade de Salamanca é a fachada do século XV-XVI, uma filigrana plateresca talhada na pedra de Villamayor, com uma infinidade de elementos, desde a misteriosa rã (uns dizem que é a marca do pecado...) até brasões, personagens mitológicos, papas e reis. O portal contrasta com o interior, austero. Exatamente como em outros edifícios da cidade, bastante despojados, mas com seus portais trabalhados em pedra dourada. Ainda assim, ao entrar na antiga universidade (a sala Miguel de Unamuno parece ser a única utilizada pelos alunos atualmente), vemos abóbodas góticas, tetos em madeira de inspiração moçárabe, a biblioteca de 1509, a capela do século XVII, as salas que conservam as placas de seus antigos destinos. Cada uma com seu estilo, a Fray Luis de León, por exemplo, ainda possui os bancos rústicos do século XVI onde os alunos se sentavam para aprender teologia. Para chegar ao segundo andar, subimos uma escada, cujos símbolos herméticos, uma vez decifrados, simbolizariam o aceso ao saber. Do alto observa-se com clareza a disposição do prédio, muito comum na Espanha, formando um quadrado. No centro do pátio, o esperado poço de água que pretendia recordar uma fonte inesgotável de vida.

Mats Ek no Palais Garnier

Sábado passado fui ao Palais Garnier para assistir aos balés de Mats Ek, coreógrafo sueco nascido em 1945. Dois balés, La Maison de Bernarda e Une Sorte de... Não, não entendo nada de balé. Confesso mesmo que o interesse era um pouco conhecer o Palais Garnier, suntuoso, com belas pinturas de Chagall em seu teto. Tinha a expectativa também de que os balés seriam acompanhados por orquestra, lembrava-me de ter assistido aos de Bartok em Strasbourg... Nada disso. E talvez por isso um sono mortal no primeiro, de 1978. Colagens de músicas espanholas tradicionais inspiradas numa peça de Lorca, afetado, dramático. No segundo, escrito mais recentemente, em 1997, um cenário inventivo (foto acima) e uma coreografia sobre música moderna de Henryk Mikolaj Górecki redimiram a má impressão inicial.

4.5.08

Edifícios religiosos em Salamanca

Com uma parte do comércio e museus fechados no feriado em Salamanca, visitamos alguns de seus edifícios religiosos: as duas catedrais, a nova e a velha (a primeira dá acesso à segunda), o convento dominicano de San Esteban (foto abaixo) e três igrejas, do Santo Espírito, da Puríssima e de Vera Cruz. São edifícios sóbrios, mesmo discretos se comparados com a Casa das Conchas ou com o Palácio de Monterrey. Mas eis que, contornando-os, descobrem-se maravilhosas fachadas ou pórticos platerescos, do renascimento, ornamentados como se fossem de prata. Estão na catedral nova, que começou a ser construída em 1513, ou mesmo na entrada da universidade. Nos interiores, há ainda um impressionante conjunto de capitéis esculpidos com animais, cenas religiosas, e dois belos retábulos: supostamente de Nicolás Florentino na catedral velha (foto acima), terminado em 1445 e um dos principais testemunhos da arte florentina do século XV, e outro, barroco, na linda Capela de Vera Cruz, pouco indicada pelos guias da cidade.

3.5.08

Salamanca

Estivemos dois dias em Salamanca, bonita cidade de igrejas velhas, ruas estreitas, douradas, e uma antiga universidade, fundada em 1218. Dois dias de sol até mais de 9 da noite, agradáveis. Salamanca está a mais ou menos 800 metros de altitude. Nela, o tecido urbano se mesclou com áreas históricas importantes: conventos, como o de San Esteban (foto 1), a ponte romana do século II (foto 2), antigos palácios (como a Casa das Conchas, foto 3). Em dias de feriado, poucos estudantes e muitos turistas. Desorientados, volta e meia perguntavam aos guias: e agora, aqui é a universidade? Absortos durante minutos na frente da imponente fachada, encontraram, no entanto, diferentemente de nós, a sorrateira rã, capaz de garantir aos alunos a aprovação nos exames.

Nos edifícios públicos antigos, igrejas, túmulos, há uma grande variedade de animais, como o leão vigilante da última foto acima, da Catedral de Salamanca. É só para fazer a propaganda da minha contribuição mensal ao Le Monde Diplomatique Brasil, aqui.