27.4.08

As falésias das vacas negras

Semana passada, num dia de sol como hoje, embora não previsto pelos "chutadores do tempo" como diz Bruna, minha irmã, fui à Houlgate. Pequena, minúscula cidadezinha da Normandia de frente para o mar em que há, anualmente, o festival Plein vent, com soltadores de pipa de todo o mundo. Vazia num período em que os turistas ingleses ainda não tomaram a região, desanimada porque não havia vento suficiente. Estive lá para caminhar entre os quatro quilômetros que a separam da cidadezinha ao lado, Villiers-sur-mer. Entre elas se estende um longo percurso sob falésias, denominado "Falésias das vacas negras", muito provavelmente em virtude de um conjunto de pedras argilosas de quase 2 metros, próximas ao mar, todas elas repletas de mariscos. Vistas nas horas de maré baixa, em que se pode justamente ir de uma praia à outra, parecem blocos soltos que se foram sedimentando. A foto acima mostra só um pouco do caminho. O percurso, de mais ou menos 4 horas ida e volta, pode ser visualizado neste link.

26.4.08

Mais música em Paris

Tenho ido uma terça-feira por mês à Salle Cortot. É algo que me diverte em Paris. A associação Animato reúne jovens pianistas, todos futuros ganhadores dos milhares de concursos internacionais que existem. Alguns de 8 anos apenas, outros de 18, nunca mais do que isso. Apresentados de forma agradável, como se se tratasse de um encontro semanal de bingo, revezam-se num repertório sempre arriscado. Risco calculado (um dos meninos de 15 anos tocou a difícil Islamey de Balakiriev e um dos estudos sinfônicos de Schumann com grande habilidade): igual a aplausos, bis e a convites para outros recitais. No entusiasmo, não é estranho que os concertos se prolonguem por quase três horas!

Fui na semana passada com um casal de amigos assistir a um show de rock. Com os anos, encaro-os cada vez mais como um acontecimento digno de interpretação antropológica. Mas fui mesmo assim. La Flèche d'Or (foto acima) é um bar construído no mesmo lugar de uma antiga estação de trem parisiense abandonada. No site, eles dizem que servem jantares, não é o mais importante. Diariamente, artistas da "cena" européia e sobretudo inglesa sobem ao palco para promover seus discos novíssimos. Merz esteve lá com seu rock-folk melo(dio)so repleto de parafernálias eletrônicas, para o delírio de um público que pedia silêncio aos que disputavam uma cerveja cara. O show, recomendado pela revista Télérama, era gratuito.

25.4.08

Diário de um louco de Gogol

Diário de um louco é uma novela de Gogol, escrita em 1835. Adaptada ao teatro e constantemente encenada, trata-se do relato dia após dia (com lacunas expressivas, interrupção da iluminação sobre cena) de um funcionário de ministério que vai enlouquecendo pouco a pouco. Surpreende uma conversa entre cães, diz ser o rei da Espanha, Fernando VIII (como o fará, a seu modo, o Quincas Borba de Machado de Assis). Levado ao manicômio, chega mesmo a desconfiar que os maus-tratos provenham de hábitos nacionais inusitados. Imagina-se, então, louco. Encenada com habilidade e realismo por Antony de Azevedo no Sudden Théâtre de Paris, nela há um momento particularmente interessante. É quando a personagem se põe a ler cartas entre dois cães, comentando-as. A ironia e um certo recuo lógico sobre a natureza da relação entre ambos, e de ambos com relação aos homens em geral, produzem um humor devastador. Fazem-me lembrar, num registro mais sofisticado, mas não menos irônico, o Cabinet noir de Max Jacob.

24.4.08

Llegan barcos a la costa trayendo frutos de afuera ou Ricardo Piglia em Madrid

Conheci Ricardo Piglia, mas isso é assunto para a posteridade. Foi em uma Semana de Autor dedicada a ele entre 14 e 19 de abril na Casa de América (programação e vídeos de todas as mesas de debate), também no dia 20 de abril no Centro de Arte Moderno. Os pontos altos foram a fala de Alan Pauls sobre a noção de “último”, ensaio iluminador, muito distante dos lugares comuns da crítica. Também a finalização das homenagens: exibição de um trecho da ópera La Ciudad ausente e execução dos Postangos, duas mostras rápidas mas incontestáveis de Gerardo Gandini de como se pode fazer música contemporânea que se presta ao desfrute! No Centro de Arte Moderno, o filme La Sonámbula (1998), dirigido por Fernando Spiner, com roteiro dele e de Piglia: memória sombria de 2010 com flashs poéticos de um passado recente, em diálogo com Laura, 1984 e com o futuro Minority Report de Spielberg. De tudo, entretanto, o que me fez muitas vezes sorrir e muitas vezes menear com a cabeça em gesto afirmativo foi a conferência magistral de Ricardo Piglia, “¿Qué será la literatura? Tres historias de infancia”. Apesar das três histórias, as duas, sobre as quais tanto insisti durante três anos, quando escrevi um estudo sobre sua obra, estavam ali, embora em ordem inversa. A segunda história, “la subterránea, la interminablemente heroica, la impar”, também, claro “la inconclusa”, foi exposta pelo Professor Ricardo Piglia, com direito a pausas e exemplos: “afinal, como a técnica pode responder qual será o futuro da literatura?” ou “por que a literatura, ao usar mal a técnica ou ao lutar contra o limite oferecido pela técnica, a torna tão produtiva?” Depois, a primeira história, chamada “Tres historias de infancia”; aparentemente simples, embora responsável por esconder a segunda, foi narrada por Piglia-Renzi, quase como uma lembrança infantil, despretensiosa e sincera.

23.4.08

Regards critiques no Pompidou

Semanalmente, o Centre Pompidou vem exibindo filmes gratuitos acompanhados pela crítica simpática de Jean-Louis Comolli, ex-redator chefe do Cahiers du Cinéma e documentarista. Trata-se do ciclo Regards critiques. O filme da semana passada foi Las Hurdes ou Terra sem pão de Luis Buñuel (1933). Documentário sobre uma pequena comunidade acima de Salamanca, Espanha. Preocupado com as condições de vida miseráveis do lugar, e numa época em que registrar o áudio direto dava um trabalho enorme, envolveu-a com a música austera de Brahms e com um discurso ininterrupto. Com ele retirou as eventuais ambiguidades da imagem, como no caso de alguns campesinos, chamados rapidamente de '"crétins", cretinos, débeis-mentais. Noutros momentos, interferiu mesmo no registro documental. Arquivos mostram que uma caminhada de habitantes aguardava o sinal da claquete. Outros elucidam o destino de uma cabra que caiu melancólica de um desfiladeiro, devorada em seguida pelos habitantes famintos (é o que nos diz a narração). Foi alvejada pelo revolver de Buñuel, atirador entusiasta.

Ciclismos

Recebi na semana retrasada a visita ilustre de meu pai. Ciclista amador em sua juventude, quando (os relatos diferem nesse ponto) subia até Petrópolis todos os finais de semana com sua bicicleta, ficou entusiasmado com a história da Velib. Planejou mesmo ir à Chartres ou à Fontainebleau. Com pouco tempo, o máximo que fizemos foram duas descidas entre carros pela concorrida Rue de la Roquette na Bastille e pelo Boulevard Raspail. Coisa de 20 minutos cada uma. Ainda em forma, sentiu frio. Um estacionamento vazio para as velib e uma tartelette au chocolat na rue du Vieux-colombier foram pretextos aos quais não consegui me opor.

22.4.08

Nelson Freire na Salle Pleyel

O pianista brasileiro Nelson Freire tocou na terça-feira passada na bela Salle Pleyel de Paris, no Faubourg Saint-Honoré. Muito, muito aplaudido pela maior concentração de laquê por metro quadrado que encontrei por aqui (comparável com a do Teatro Municipal do Rio), executou com notável precisão, variedade de timbres e agilidade o difícil segundo concerto de Rachmaninov. Diante de uma orquestra um pouco sonolenta, deixou no entanto a sensação de um certo embate: tocava como se tivesse com o freio-de-mão puxado. A peça seguinte, a agradável Sinfonieta de Leos Janacek (sem Nelson Freire), foi o castigo. Exigente com os músicos da orquestra, com breves solos de sopros e metais, não deixou passarem despercebidos os equívocos e o sono.

21.4.08

Monicelli e as mulheres

Speriamo che sia femmina (1985) de Mario Monicelli é um filme de mulheres. É exceção no universo masculino dos divertimentos tardios de Meus caros amigos ou dos falsos heroísmos de Brancaleone. Em Le rose dei deserto (2006), filme que trata de um acampamento médico italiano na África no período da Segunda Guerra, delas há poucas lembranças. Ausentes, não se deixam pressentir senão através de uma pequena caixinha de cartas que um dos oficiais leva consigo, sem lê-las. Quando se vê envolvido, aos poucos, pelos problemas da vida local ou pelo desejo de um coronel de construir um enorme cemitério, se descobre traído. Em Esperamos que seja mulher, as personagens de Liv Ulman e Catherine Deneuve, e de tantas outras mulheres, vão sendo deixadas, igualmente enganadas. Estão só, nada dá certo: um ex-marido falido e empreendedor, um lingüista aficcionado por canções em dialeto, um escritor estéril e pervertido, um outro que se casa às escondidas. A despeito de todas essas dificuldades e da impossibilidade de uma relação a dois, a reunião de todas na mesa de jantar ao final guarda, no entanto, uma alegria cúmplice. É o momento em que se diz a uma delas, grávida, a frase que ficaria como título.

A internet é divertida. Na busca pela imagem acima, eis um fórum italiano para mulheres e com ele uma lista de vários filmes "femininos": aqui.

19.4.08

A mesquita de Córdoba

A mesquita-catedral de Córdoba, como uma boa parte dos edifícios religiosos da Espanha, é um prédio compósito. Nele os diferentes ocupantes foram deixando suas marcas. Erguida nos anos 700 sob o reino de Abd al Rahman I em cima uma igreja visigoda, cujos vestígios estão expostos na atual catedral, foi ampliada sob o reinado de Hisham II, quando se constrói o belo mihrâb (primeira foto acima), e sob o reinado de Mansour, que priva o mihrâb de sua posição central (está num canto cercado de grades e de turistas da terceira-idade). Com a conquista de Fernando III, evidentemente, tornou-se um templo cristão. Fecham-se as várias entradas laterais. Constrói-se uma grande capela, depois uma catedral (isso tudo no meio da mesquita!). Nada a ponto de tirar o encanto de seus arcos vermelhos e colunas (segunda foto), de variadas procedências: Constantinopla, França, Cartago. Multiplicam-se ao infinito, movimentam-se. Com as portas laterais fechadas, no entanto, perderam a luz generosa da cidade e das casinhas brancas que se espalham a seu redor.

18.4.08

Touros

As duas fotos acima estavam aqui esperando. Mostram dois dos assistentes do toureiro, diga-se assim. O primeiro preparando-se para atacar o touro, como num elegante balé. Chama-se "bandarillero". O segundo, executando uma manobra arriscada, muito aplaudida: dar as costas ao chifrudo, coisa para corajosos. Com sua capa rosa, que o diferencia do toureiro matador (de vermelho), nada o proíbe, no entanto, de correr desesperadamente em direção a uma área protegida, caso a coisa fique preta.

16.4.08

O século XIX no Prado

Quadros antes fechados no Casón del Buen Retiro (em reforma desde 1997) e agora expostos nas novas e polêmicas dependências do Museu do Prado (ampliação realizada por Rafael Moneo). Por vezes com reflexos, por vezes dispostos inadequadamente (por exemplo, duas telas de grandes dimensões frente a frente e, portanto, obrigando os espectadores de uma a estarem necessariamente na frente dos observadores da outra), a exposição pretende um itinerário didático, de Goya a Sorolla. Parte-se do mais neoclássico (José de Madrazo, La muerte de Viriato), passa-se pelo Romantismo com motivos retirados da Idade Média ou ainda pelos retratos misteriosos, no limite do sensual (como na tela da Condesa de Vilches, Amalia de Llanto y Dotres, realizado por Federico de Madrazo em 1853 ou na de Raimundo de Madrazo y Carreta, 1879, que conferiu impressionante elegância a um de seus mecenas, Ramón de Errazu). Também pelas paisagens sublimes, com homens pequeninos, com uma e outra ruína. Alcança-se o Realismo de inspiração histórica (Eduardo Rosales, José Casado del Alisal) ou as paisagens que se pretendem realistas (Carlos de Haes) para, enfim, terminar a série de quase 100 quadros com o retrato social, que ora é objeto de crítica (como em Sorolla), ora apenas constata a pobreza ou a dignifica (como em Zuloaga, Victor Manzano ou Mariano Fortuny, este último sobretudo em Viejo desnudo al sol, 1871). Graças a Ramón, o que mais me chamou a atenção foram as representações da rainha conhecida por seu amor desmedido, Doña Juana la loca. De Francisco Pradilla (1848-1921), uma tela cinza de 1877 (acima), em pleno inverno e em pleno descampado, com Juana ao centro, grave e dramática, em contraste com o tédio da côrte obrigado a acompanhar o féretro de seu esposo, Felipe el Hermoso. De Lorenzo Vallés (1831-1910), Demencia de doña Juana de Castilla, 1866, com Felipe ao fundo, recém tirado de seu sepulcro (porque assim Juana acreditava que poderia fazê-lo voltar à vida) e alguns nobres no outro extremo, provavelmente tentando explicar que o esforço seria inútil. No centro, Juana, com o rosto convicto que somente os loucos podem manifestar, e o dedo indicador nos lábios, pedindo silêncio.

11.4.08

Touradas de Sevilha

Confesso que tive certa dificuldade em compreender a criatividade de Goya no seu desenho El toro mariposa - o touro borboleta - celebrado numa exposição do Prado que comemorava sua aquisição. Pois esse obstáculo, digamos, cultural, foi parcialmente reparado com a “corrida de toros” que assistimos na Plaza de Toros de la Maestranza de Sevilha durante a Feira de abril (aqui, link para a ficha técnica do dia em que fomos, inclusive com as indicações das críticas que saíram nos jornais). A verdade é que há muito de dança no ritual, de “festa no ar”, como o segundo nome que dá título ao desenho de Goya. Mistura difícil de explicar de coragem e delicadeza, enfrentamento e malabarismo, barbárie e luxo. O que não sabíamos, em nossa santa ignorância, é que não se trata de uma tourada, mas de várias, também de vários toureiros ou “diestros” (na ocasião, Javier Conde vestido de marfim e ouro; Sebastián Castella de azul e dourado (acima); Alejandro Talavante de lilás e dourado). Do nosso ponto de vista, a razão para os 6 touros parece simples: tudo acontece rápido e não se pode confiar o show apenas a um touro ou a um toureiro (se um deles é ruim, não sobra nada). Também outra barreira cultural foi desvelada: reconheci uma das caricaturas do pobre do Ramón como “picador de toros”, ou seja, o cavaleiro mais ou menos gordo que é responsável por espetar o touro com uma garrocha ou farpa no começo da corrida... Para terminar, explico que a platéia é um espetáculo à parte: em sua maioria homens, muitos com brilhantina, chapéu e charuto, aficionados, quase nervosos, remoendo palavras incompreensíveis depois de gritar silêncio (paradoxo tipicamente espanhol). Tudo para ouvir os ruídos do touro, tanto quanto o toureiro que ordena e desafia com seu “¡Hei, toro!”.

A Alhambra de Granada

Principal atração da cidade de Granada, a Alhambra era uma outra cidade, com todos os serviços necessários à população árabe que vivia nesse espaço: o palácio real, a mesquita, escola, jardins, etc. Hoje, entretanto, quando se visita o que se chama Alhambra, visitam-se três palácios: a Alhambra propriamente dita, o Generalife e o Palácio de Carlos V, além da Alcazaba (lugar fortificado) de que se tem notícia desde o século IX e vários e imensos jardins. As duas primeiras partes foram construídas pela dinastia muçulmana, entre 1238 e 1391, durante cinco gerações de soberanos. O último palácio, sem dúvida menos interessante, foi erguido a partir de 1482-92, quando os reis católicos dominaram a região. Parece que uma das principais intenções dos reis árabes durante a construção de seus edifícios era decorar todos os espaços, por menores que fossem. Dentro deles, portanto, combinam-se materiais bastante frágeis como madeira, gesso, azulejo e cerâmica para criar rendas muitíssimo delicadas com imagens de folhas, laços, losangos e a escrita cursiva árabe. Como se não bastasse, quase tudo é cuidadosamente pintado, com muito azul e dourado. Dos interiores, recobertos de minúcia, frescos, amenos e sombreados, observam-se, recortados pelos elegantes arcos, as grandes paisagens. Ora a Serra Nevada, ora a branca cidade de Granada, quente, com sua luz crua que quase chega a cegar os olhos menos acostumados.

7.4.08

Últimos dias

Imagens da última viagem. De onde serão?
Não vale ampliar.

1.4.08

Ateneo de Madrid

Instituição privada que se agrupa em torno do estudo, difusão e discussão da Ciência, da Literatura e das Artes em geral desde 1835, El Ateneo está na calle Prado, 21, num edificio moderno de 1884, construído por Cánovas del Castillo. Ramón foi sócio e secretário dele, onde deu também uma ou outra conferência. Para visitá-lo, ver os quadros a óleo dos “ateneístas ilustres” (entre eles, claro, o de Ramón) tanto quanto o dourado Salón de Actos, belamente decorado com alegorias das artes e das ciências, basta pagar 1€. Melhor que isso é assistir a uma das atividades culturais propostas a cada mês. Com 1€ mais pude ouvir Bach, Haydn, Beethoven, Chopin e Bartok num recital de piano de Maite Blanco Robledano!